17/05/2021

Entre Carpas e Vinhos

A rolha que salva o seu vinho de cada dia pode salvar também sua pescaria.

Acho que foi em 2004 quando tomei gosto pelo vinho. Antes disto comecei tomando aqueles de mesa comuns, estes que vêm em garrafão ou caixinha, mesmo suaves, que são aqueles com adição de açucar.

Dizem que o paladar amadurece com o tempo e em 2004, depois de muito vinho doce e muita dor de cabeça, tomei meu primeiro Syrah do Novo Mundo. Foi paixão ao primeiro gole, se é que posso dizer assim. Não que fosse um vinho muito sofisticado ou caro, nada disso. Mas naquele momento eu senti o gosto da terra e das especiarias, e enquanto aquele santo suco de Baco inundava minhas papilas gustativas eu fiquei imaginando as pessoas que colheram aquelas uvas. Uvas que talvez tenham sido amassadas com os pés, à moda antiga. Imaginei quanto tempo o vinho havia passado em uma garrafa em seu processo de amadurecimento até o dia em que eu o libertara. Pronto! Fui fisgado como uma truta abocanhando um fino anzol de mosca seca. E daquele momento em diante eu ainda veria muitas ampolas terem seu fim.

Junto com as garrafas vieram as rolhas. Embora muitas vinícolas façam uso de rolhas sintéticas, acredito que a maioria dos vinhos ainda vêm com rolhas de cortiça natural. Sim, a garrafa é lacrada com um pedaço da árvore corticeira. Não me arrisco a opinar sobre a sustentabilidade deste processo, pois, apesar de tudo, a rolha tradicional é reutilizável, reciclável e biodegradável.

Talvez você tenha o mesmo hábito que eu, de guardar todas as rolhas que consome. Eu não vou negar que costumo trazer até mesmo de viagens internacionais as rolhas que consumo, mas não aceito doações de estranhos. Pra entrar na minha "coleção" de rolhas o vinho tem que ser consumido por mim. Não faz o menor sentido, eu sei. Penso que é um tipo de orgulho ver aquele monte de rolhas e saber que eu  ingeri tudo aquilo. Se o seu médico falar em TOC, acumulação compulsiva ou qualquer coisa relacionada a uma "patologia", troque imediatamente de médico.

Engraçado que eu nunca fiz um cálculo de quanto eu já devo ter gasto com tanto vinho. Isto seria como calcular o quanto já gastei em pesca. Este tipo de análise é comparável a um pai dizer o quanto já gastou com seu filho, simplesmente não pode ser feito. Cálculo totalmente desnecessário. E se a sua mulher, algum dia, ousar tocar no assunto, explique a ela que vinhos são como sapatos e moscas são como as bolsas. Fim da história.

Eu sempre tive a certeza de que um dia eu acharia uma utilização pra estas rolhas. Meu grande amigo e dindo, que divide o mesmo gosto pelos vinhos e mantém uma prateleira com canecas enfileiradas que servem de cesta para arremessar as rolhas, já fez uma árvore de Natal com algumas rolhas e confesso que ficou um espetáculo natalino! Também já vi móveis decorados com elas e ficam geniais.

Mas foi lendo a última edição da revista americana, Fly Fisherman, que descobri uma nova e útil aplicação pras rolhas de cortiça. Sabe aquele dia em que você quer dar uma pescada livre de bolsas, pochetes e coletes, só com a roupa do corpo e uma varinha na mão? Enfiar as moscas no bolso pode danificá-las, fica uma bagunça e você ainda corre o risco de espetar um anzol na pele. Pendurá-las no boné ou chapéu pode funcionar, mas com mais de 5 moscas estampadas na testa você fica parecendo um pavão. Então uma simples ideia, pegue uma ou duas rolhas e crave uma seleção de moscas em cada uma delas. As rolhas "iscadas" servem perfeitamente no bolso da camisa, da bermuda, calça, ou no bolso do wader.

Essa técnica permite o fácil manuseio das moscas e você vai se surpreender com a quantidade de iscas que uma simples rolha pode levar!

E se você costuma pescar peixes que comem ração, em pesqueiros, aqui vai outra utilidade corticeira que aprendi com outro amigo expert no assunto. Compre um vazador no diâmetro da ração utilizada no pesqueiro, que em geral é de 6 à 8mm. Corte uma rolha em "fatias" de mesmo diâmetro da ração e com o vazador, e o auxílio de um martelo, perfure a cortiça para recortar as "bolinhas" de ração.

Algumas rolhas têm melhores propriedades para este fim do que outras. Rolhas guardadas há muito tempo tendem a ressecar e ficarem mais quebradiças. Rolhas de cortiça aglomerada funcionam muito bem e dificilmente racham ao cortar com o vazador. O importante é utilizar uma rolha em um tom próximo ao da ração a ser imitada e cortar a cortiça no tamanho mais próximo possível desta ração.

O anzol a ser utilizado nesta técnica deve ter a haste curta o suficiente para ficar coberto pela cortiça e quanto mais discreto ele for, melhor. Os peixes de pesqueiros são mestres na arte de identificar imitações. Anzóis com a haste 1XF e do tipo Scud funcionam bem, pois são curtos e têm o gap (abertura) maior. E não esqueça de amassar as farpas de todos seus anzóis!

Para fixar o anzol utilize um estilete afiado e corte uma fenda rasa no meio da cortiça, suficiente apenas para esconder a haste do anzol. Aplique cola à base de cianoacrilato, posicione o anzol e, se necessário, aplique mais uma fina camada de cola para selar a fenda. Pressione as laterais da cortiça por alguns segundos para que o anzol fique firmemente colado nas laterais da fenda e esta, por sua vez, tenha suas laterais coladas uma na outra. Para melhor dosagem e aplicação da cola recomenda-se o uso de um Bodkin.

Muito bem, agora o negócio é produzir matéria prima pras rações. Hoje é sexta-feira, dia de tomar vinho!!

E tem mais um detalhe, se a carpa não pegar suas rações de rolha, mude a cepa do vinho. Essa carpa pode ser enófila...

Marcus Konze